domingo, 19 de dezembro de 2010

Vinil...



Ele se aproximou da lixeira e começou a jogar os discos de vinil. Foi se desfazendo de um por um sem se importar. Parecia um ato mecânico sem resquícios de sentimentos por tais objetos. O que o levou a fazer isso, não sei. Seu rosto estava pálido, suas mãos pareciam tremulas. Os discos se desprendiam da sua mão, mas não com tanta facilidade. Eram gestos sem vida. Será que dera para sonâmbulo agora, também não sei, mas lembrava um zumbi.

Há muito seu comportamento mudou, ele deixou de falar rindo: seu olhar antes brilhante, agora vivia perdido na linha do horizonte, de uma opacidade sem fim. Seu corpo definhava sobre a terra, tudo que comia jogava fora minutos depois. Não sabia por que, mas a comida perdera o gosto. E passou a tomar água só quando a sua língua já estava a colar-se na superfície do céu da boca. Parecia está um morto vivo.

Os próximos não o entendiam, questionavam, mas ele não tinha resposta: um silêncio lhe invadiu como se comportasse as dores do mundo. Mas, a sua dor, está que ninguém via, parecia tão sua, e só sua, que o mundo se tornara pequeno perante a sua imensidão.

Que estado de alma era a sua, de inquieto a vagante, de iluminado a obscuro. Ele se perdeu no labirinto dos sonhos. E as escolhas o deixaram mais e mais distante dos planos. Chocou-se ao deparar-se com a vida lá fora. E sabia que não podia voltar. E sabia que viver não cabe retroceder. Ele seguia e aquele povo lá parado continuava lá: distante, longe como miragem. Isso o machuca. Sua mão não os alcança e eles são tragados pela areia movediça dos próprios destinos. Estão todos mortos. E ele vivo. Ainda vivo, mas cheio de peso e dor.

Ele se culpa, se tortura e se julga. Disse que não iria morrer, que iria voar, que recobraria o ar e os ressuscitaria. Mas fugiu, teve medo, foi para bem longe. Se fechou e passou a agir como se não existissem. Mesmo em forma de carne putrefata existem. Existem antes, existem nele. E não é só lembrança.

Ele se nega a salvá-los, ele não pode. Ele tem medo de se autodestruir: é como uma praga que se pega quando entramos em contato, tudo destrói por dentro. Ele que ir para mais longe.

No fundo, sabe que não pode ser tão cruel, frio. E sua apatia reflete a sua impotência. Ele também morre. Dentro em breve morrerá. Por isso fez questão de se desfazer dos discos de vinil. Não quer mais se lembrar do que podia ser. Sem música e sem esperança. Só o fim.

La Baca

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Parafraseando a parafrase alheia...

             Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, as Metamorfoses, o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança, da renovação e da repetição, do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos:

Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio... O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia suceder a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a Natureza não descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos... Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste.


       {CHAUÌ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Edição Ática, 2000. p. 26-27.}

domingo, 1 de agosto de 2010

Museu Rodin...



Há alguns meses a cidade foi agraciada com a exposição de obras originais de Rodin, no museu que leva seu nome situado na Graça, Salvador, Bahia. E, ao longo desse período, estou a ouvir “os burburins rodianianos!”. Óbvio, que eu queria ter ido à noite de inauguração. Mas a efervescência das gentes me assusta, seus olhares. Então contive toda expectativa. Não, naturalmente. Porque a rotina me desviou bastante de toda contemplação. Ainda bem que o caro A. Trudesk compreendeu. E desculpe, mas aconteceu. Eu fui só. E sem premeditação. Simplesmente olhei para frente. E o Museu Rodin, estava justo na minha frente. Mesmo acanhada e de chinelas, adentrei. Ufa...eu estava lá “Tetê à Tetê” com as obras de Rodin. Finalmente.

Ai, foi estranho. Primeiro me sentir “um peixe fora d’água”. Então me dispus a ambientar-me. Comecei por ler o Prefácio...

“...Ausência de partes, fragmentos de esculturas através dos quais se poderia ter a emoção, a explosão de uma idéia ou o silêncio oriundo de uma ação reflexiva...Para Rodin a obra acabada é aquela que mostra o homem em sua complexidade...”

Fui olhando os traços, e as formas dadas ao gesso. Na sua maioria “corpos humanos”, fragmentos. Copos musculosos (físico greco-romano), cabeças de mulheres, corpos se alongando, corpos se tocando, grandes, médios, pequeninos.

Uns foram feitos com base na técnica de Assemblage, i.e. reunião de figuras (fragmentos) criando a composição de grupos (corpos, ou as partes deles).

Usar a Assemblage foi à marca artística de Rodin, que rompeu com a “perfeição” das esculturas clássicas. Seus fragmentos foram logo taxados de inacabados!

O que logo chamou minha atenção foi a sua data de nascimento 1840, assim como Monet. E também as críticas, na mesma medida, que ambos sofreram ao romper com o caráter apolíneo da criação artística predominante no período.

Depois, o movimento. Os olhos são estáticos frente à mobilidade das obras de Rodin. A impressão que eu sentir era que a qualquer momento aquelas pernas sairiam correndo atrás de mim. Ou que a moça do Le Sommeil (O sono) estava a me cortejar com aquele sorriso tão lindo e sublime. E La Porte de L’enfer, seus personagens, estavam a me chamar para participar da orgia.

Dizia Rodin em suas meditações:


“Não invento nada eu redescubro”...

- Imagina só, se ele inventasse!

Suas obras mais famosas, como O Beijo e O Pensador...também despertaram atenção. Mas, confesso, que a história por trás delas, foi o que mais gostei. A conclusão que cheguei é que Rodin era fascinado por Dante Alighieri, autor da obra Divina Comédia. Eis a fonte de inspiração de suas esculturas. Foi uma surpresa saber que O Pensador (1880), foi uma homenagem a Dante Alighieri, e que seu nome de origem era O Poeta.

Fiquei igualmente encantada ao saber de alguns de seus imortais pensamentos:

“Se a religião não existisse, eu teria a necessidade de inventá-la. Os verdadeiros artistas são em suma, os mais religiosos dos mortais.”

“Tudo é belo para o artista, porque todo ser é em cada coisa, seu penetrante olhar descobre o caráter, ou seja, a verdade interior que transparece sob a forma”.


E por fim, ver a exposição de Mucha Rodin, me fez enxergar uma arte “sexual/sensual”. É, na noite anterior, um amigo me disse: “Para mim arte é sexo!”. E eu brinquei: “Na arte que quero ver, não tem sexo. E se existir, será o dos anjos.”. É, como já ouvir falar, amigo “Tu és um Guru”. E eu era tão ingênua em relação às artes e ao sexo dos anjos!










sexta-feira, 30 de julho de 2010

As imagens, Eu, Ela e Claude Monet.

Engraçado. Prefiro ver a imagem que vem da TV pelo reflexo da porta de vidro da sala. Não é uma imagem tão nítida quanto à imagem da TV. Engraçado. Imagem nítida? Desde quando. Sei lá. Mas eu estou de óculos. Engraçado. A imagem da porta de vidro me parecia sem óculos. Engraçado. E repetitivo também. Garanto que pensou nos quadros de Claude Monet (1840-1926), nos Jardins de Monet. Consigo vê-la descrevendo os “pontinhos” das telas de Monet. E jurando, mesmo antes de saber, que ele tinha problemas de visão. Cansei de ouvi-la dizer: “ele é míope!”. Eu sei. Engraçado. Você não tinha certeza disso, mas dizia. E quando finalmente confirmou, eu estava do seu lado vendo você vibrar e dizer: “Eu tinha certeza!”. Eu te admiro tanto por isso. Sua intuição às vezes me espanta. Como foi mesmo que você ficou sabendo de Monet? Lembrei. Sempre gostou de imagens. Foi folhear despretensiosamente um livro de gravuras. Logo de quem? De Monet. É, mas naquele tempo. Porque isso já faz muito tempo. Você ainda não usava óculos.

Nem sonhava que um dia usaria. Mesmo com sua mãe, tia, primas e avó já a usar tal indumentária. Então, como descobriu que ele, assim como você agora, não enxergava tão bem assim? A é verdade. Você me disse isso também. Quando começou a perceber. Só foi quando se viu sem óculos. Ou melhor, me desculpe, você ainda não usava óculos quando descobriu. É que você simplesmente passou a ver as paisagens, os jardins, as flores, as lagoas, os barquinhos, toda gente, a movimentação e as variações dos tons das luzes e até as sombras do mesmo jeito que anos atrás viu nos quadros de Monet.

Garota esperta. Sempre vendo além. Sempre achando as respostas, antes mesmo de fazerem as perguntas. Sempre a me surpreender. E depois disso. Desse achado, sobre a pouca visão do artista, você nunca mais me deixou em paz. Ainda bem. Ainda bem que sempre dei asas a sua imaginação. E não é que acertou em cheio. Me encheu tanto, mais tanto. Que fiquei morto, é melhor, vivo de curiosidade. Quem é esse tal de Monet de quem ela me fala tanto. E seus quadros são mesmo encantadores como ela diz ser. Será que vou ver os tais “pontinhos”?


  

Eu tive medo de me decepcionar. E por um tempo, fiquei só a imaginar, a ver só a beleza que ela me dizia que via. Ela chegou a me encorajar.

Ela me deu um Monet de presente de natal. Não, não foi uma tela. Hoje as telas de Monet são caríssimas. Foi um cartãozinho, lindo, só com a imagem. Foi aquele quadro de nome “o Sol se Levanta”. Antes de me entregá-lo ela observou: “esse foi o primeiro, que inaugurou a sua primeira exposição e a corrente impressionista!”.

  
Eu pensei, deve ser mesmo especial esse Monet, ela parece saber tudo dele, seus olhinhos de esmeralda, transbordam de emoção. Mas ainda assim, com um gesto tão lindo, eu não tive coragem de olhar para a gravura do cartão. Eu disfarcei, e assim que ela se afastou, o guardei no jaleco. E por anos o deixei lá esquecido. E também não quis saber do que se tratava o “impressionismo”.


Hoje eu sei do que se trata.


Sei também da história de Monet, sua vida e obra. Sei também porque ela gosta tanto dos quadros de Monet. E eu não uso óculos. E o medo passou. E eu vi os “pontinhos”. E agora, eu riu de mim.



Rimos juntos, eu, ela e Monet. Da minha relutância. Engraçado.



                        Por toda minha paixão por Monet.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dos tempos 10.




Desde aquele dia que uma canção não sai da minha cabeça. É, aquele dia em que acordei na beira da praia...com areia na calcinha! Eu cantarolo a canção e me pego rindo. Volta e maia rindo atoa. Agora com certo distanciamento pergunto o que me deu? Como conseguir tal proeza? Sabemos que não era eu, era Alexandra! Alexandra, aquela mulher qualquer que me possuiu, roubou-me de mim. Eu podia ter morrido afogada, meu corpo, mas não minha mente, questiono até se minha alma? Mulherzinha qualquer, biscateira, puta, embriagada, fumada uma desgraça!

Mas eu rio sem freios quando lembro “...se acaso me quiseres eu sou dessas mulheres que só dizem sim...”. Sim. Súbitos sins. O risco mais gostoso de toda a vida até ali.

Depois voltei, da mesma forma que cheguei lá. Agora peguei um ônibus que eu sabia que me deixaria na rua de casa. Era umas onze horas da manhã. Ninguém me viu chegar, pois todos já estavam na rotina diária. Ainda tonta e tentando entender me joguei em baixo do chuveiro, o mesmo banho quente que aquece meu sangue frio. Vi marcas no meu corpo, umas mordidas, umas chupadas com tom azul arroxeado. Uma seqüência de fleches, imagens deslocadas, um turbilhão de pensamentos. Eu abria e fechavas os olhos e minha cabeça latejava mais e mais. A espuma estava marrom, um lodo e muita areia escorriam até o ralo. Aos poucos a inhaca fedida cedia lugar para o cheiro agradável do shampoo.

Eu não estava arrependida, mas me empenhei em esquecer. Fui até o quarto da minha mãe e peguei um de seus soníferos. Tomei e acordei às cinco horas do dia seguinte com o barulho do despertador. Algo que me fez sentir novamente a Madalena que sempre fui. Presa ao relógio, condicionada à suas horas. Senti meu peito apertar, mas em seguida veio o alívio. O confortável alívio de não ter me acontecido nada pior.

Pensei em contar para Bia, sempre dividimos angústias. Mas me contive. Ela sempre esteve a mil passos de mim, com seu espírito de aventureira inveterada. Mas, hesitei. Fiz um pacto de silêncio comigo mesma. Para manter o mistério e preservar a identidade de Alexandra. Ela me deu prazer. Então guardarei segredo para não quebrar o clima de perigo e não deixar escapar o gosto da adrenalina que saboreei naquela noite.



Por Madalena.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Dos tempos 9.




Sabe o que mais me angustia? É que com o passar dos anos, a visão fica pouca. Os ossos enrijecem. Meu humor que fica cada vez mais sarcástico. E minha tolerância que sempre prezei esta por um fio. Não ligo para os cabelos brancos, para pele enrugada, para barba por fazer. Maria também não liga. Ela até agradece por eu ser limpinho e tomar dois, as vezes, três banhos por dia. Ela às vezes até reclama, diz que não é bom para pele. Mas criei uma estratégia para pele, ah, para os músculos também. Passo mais de uma hora no banheiro. Me exercitando, fazendo ginástica. É uma terapia, cantarolo canções de antigos carnavais, as marchinhas. Até invento e mudo a prosa. Faço minha própria festa. Ainda bem que a casa tem mais de um banheiro. E agora eu tenho o meu banheiro. A prioridade é do velhinho aqui. Deixo outras pessoas usarem, mas ninguém pode reclamar da minha demora. Eu gosto de banho frio, mas de noite, só tomo banho quente. Com todas as portas e janelas fechadas para não pegar frieza. Um velho costume, desses que a mãe da gente aprende com a avó da gente e por aí vai. A gente pega. Eu inculco com isso. Como a gente se agarra a certas coisas...

Em moço não me lembro de ter tanta mania, agora parece que faço coleção. Que eu me lembre começou aos cinqüenta. Ou eu comecei a observar a partir dos cinqüenta. Agora nem sei mais. Só sei que começou com pequenas coisas como: o lugar da mesa da cozinha, o carro que passei a lavar nos sábados pela manhã, o sapato que não pode juntar poeira, as mãos que sempre lavo antes das refeições e outras. Tem coisas que são tiques, loucuras, coisa de gente sem o que fazer. Outras são importantes...como lavar as mãos. Outras são bobagens, superstições. Engraçado é que quando meus pais eram vivos eu não dava importância para os costumes. Odiava ter que pedir a “benção” aos mais velhos, mas a contra gosto pedia. Era uma questão de respeito. Nem no meu tempo de rebelde subverti a regra.

Agora me apego fácil a coisa boba. Não ligo para “benção” não ensinei meus filhos esse hábito, por mais que Maria fizesse questão. Não ligo mesmo, que eu me lembre a Bia nunca me pediu a benção. Mas ligo para o barulho que a cortina de miçangas da varanda faz. Já falei com Maria “isso atrapalha meu cochilo vespertino”, mas porque ela gosta, dá de ouvidos. Ligo também para os meus chinelos, tem alguém que insiste em tirar do local de costume. Ligo se eu ver alguém assistindo TV muito próximo da tela, pois faz mal para as vistas. Por isso, volta e maia estou ouvindo me chamarem de rabugento. Algo que também não entendo. São coisas minhas ora! Uma hora perco deveras a paciência, a papa da língua. Paro de ser o símbolo de sensatez dessa família. Quem sabe assim Maria dar fim na tal da cortina de miçangas. (risos).


Por João Jorge.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Dos tempos 8.




Ele jurou que não ia me perder. Prometeu a si mesmo. Confessou em voz alto e eu estava do lado. Não sei se ele sabia que eu não estava mais dormindo, por enquanto que me olhava dormir. Sentir de leve as pontas de seus dedos tocando a minha face. Não sabia distinguir se era a continuidade de um sonho ou era só abrir os lhos e ver que era real. Mas, eu preferir continuar de olhos fechados só sentindo. Sentindo o amor, o calor de seu corpo, o cheiro do seu suor. De olhos fechados ainda parecíamos um só e as imagens dos momentos anteriores vinham em seqüência. Umas mais vivas outras mais distantes. Ele continuava a conversar só, com seus pensamentos e sentimentos. Se dizia feliz, o mais feliz do mundo. E sibilava “meu amor”. Não vi, ou vi? Mas o som baixo da frase me fez ver seus olhos transbordarem num brilho em forma de lágrima. Esse era o momento de abrir os olhos e secar suas lágrimas com as costas das mãos. Seguido de sorrisos e carícias.

Mas, não o fiz. Continuei de olhos fechados. Agora quis estar em sono profundo. Foi aí que de peito apertado eu comecei a desconfiar de mim. Do amor que jurei sentir. Meu amor? Ele era mesmo o meu amor? E todo acalento passou num instante e se fez tão centrípeto. Todo sentimento bom se comprimindo a mediada que ia em direção ao centro de mim. Aquele escudo, que vai e volta. Que tira a liberdade e a fragilidade de ter nos braços do outro tudo que se precisa para viver. O encanto de saber amar se esvaindo em pensamentos calculistas. Na minha frieza de continuar de olhos fechados ocultando paranóias.

E ele? Ele não fazia idéia de minhas “maquinações”. Eu sabia disso. Isso me tranqüilizava. Bastava um de nós sofrendo. Bastava um de nós forjando o amor. E agora? Me mantenho falsa ou acabo com tudo. Acabar com ele era acabar comigo também. Eu podia não amá-lo como ele dizia me amar. Mas de certa forma o amei. Eu só não podia cumprir uma promessa que nem era minha. Ele ia me perder. Era isso que me amedrontava.

Muitas vezes sonhei com alguém assim como ele. Alguém que me completasse e me amasse. Ele apareceu, fugindo das regras dos tipos masculinos. Romântico, carinhoso, inteligente, engraçado, fiel, endinheirado e com um físico impecável. Um homem ideal. Porém, óbvio, singelo...e pouco safado. Gosto particularmente da sua simplicidade e de sempre estar disposto a ouvir, mesmo quando o que é dito nada interessa. Alguém capaz de roubar o ar e alimentar os sonhos. Mas de olhos abertos escapa-me a dimensão do seu ser.


A culpa é minha. É sempre minha. Até com o mais perfeito dos seres eu descubro motivos para seguir só. Para ser leal a minha intolerância aos compromissos. As eternidades. Aos juramentos. O medo de me achar em uma vida sem mais perdições. Por um lado é isso. Por outro, é o medo. O medo de que a realidade volte a ser imaginação. O medo de perder, de sofrer, de acabar. De voltar a contra gosto a ser só. Agora só do avesso. Só porque o amor dele acabou. E não só porque eu gosto de seguir só. É medo que nos mata. O medo de seguir em frente...de abrir os olhos. É o cúmulo do absurdo. É ser mais que imatura para relacionar-se. Até quando vou fugir da felicidade. De amar e ser amada.

Se a mamãe tivesse aqui, talvez ela pudesse me ajudar. Quem sabe a Madá?! Hum...


Por Bia.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Dos tempos 7.




Sair à revelia e entrei no primeiro boteco que apareceu na frente. Nesse dia bebi sozinha, eu que não gostava de cerveja por achar amarga a degustei docemente. Eu e aquela loira gelada tipo véu de noiva. Desceu rasgando e queimando em azia. Mas foram os goles mais rápidos e saborosos da minha vida. Não era bem a bebida, fora o contexto, fora a ocasião. Sabe aqueles dias que tu tem vontade de jogar tudo pro ar, mas nesse dia eu não quis chutar o pau da barraca. Eu rodei a baiana dentro de mim. Dei um giro na vida. A fiz colorida, a botei com todo gosto de cabeça para baixo. Finalmente quebrei a rotina. A começar pelo ônibus, resolvi ir para um bairro desconhecido, resolvi descobri-lo à custa de me perder. E me perdi! Desci instigada, com o espírito de porco que alimentava há um tempo, todo meu. Sabe, abri a Caixa de Pandora e pus pra fora a Padilha de dentro de mim. Por isso o álcool, o boteco e as caras e bocas que em breve seriam luxurias. Alguém se aproximou e Alexandra surgiu, não era mais Madalena de nascença. Foi incrível, o que me deu?! Só sei que eu podia ser quem bem quisesse. Naquele inferninho foi-se caindo à tarde, as luzes da cidade se ascenderam, mas lá dentro já era noite a muito tempo. E a luz era vermelha, também tinha um globo de boate. Porque não me dei conta assim que cheguei. Só vi mesmo quando me tiraram para dançar. Rá, dançar?! Madalena nunca dançou, dura feito quiabo de geladeira. Mas, Alexandra era cheia de gingado, baianinha, baianinha. Finalmente me identifiquei na música de Cayme “quem não gosta de samba bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé”! Alexandra parecia ter “nascido para o samba e no samba ter sido criada”. Quanto molejo havia no seu gingado. Mesmo desprovida de boas ancas ela tava que tava e os tipos em volta a devorava. Ela percebia os olhares e se desmanchava. Nunca pensei ser tão sedutora, vi um reflexo no pedaço de espelho pendurado no balcão e tive vontade de possuí-la igualmente. Mas era eu, então desejo interrompido. Alexandra nada falava, não sei se era o efeito alcoólico, mas só sorria e olhava à medida que seduzia. Sem meio termo, sua companhia queria mais e ela deixou. Deixou as mãos escorrerem pelas pernas e tomar seus seios. Deixou sua boca entre aberta para língua penetrar. Ela estava fora de si, e de mim também. Naquele lugar a levitar, uma leveza natural. Só não saiu do chão porque a essa altura seus cabelos se enroscavam naquelas mãos levianas. Nem seu suspiro ofegante foi capaz de quebrar o ritmo. E a música parou, o globo começou a girar, com seu jogo de luzes piscantes. O que passava em sua mente? Nada, absolutamente nada e a cantada mais idiota lhe excitava “vamos curtir o momento”. E amanhã?! Não existe amanhã. Já teve tudo aqui e agora. Sua companhia insistia – seu número, e-mail, como faço pra vê-la novamente. Ela disse - Adeus “monamur”! Pagou sua cerveja e deu o troco a um mendigo em troca de seu fósforo. Fuma? Alexandra fumou. E não fora qualquer cigarro! Onde arranjará aquilo mesmo?! Não faço a mínima idéia. Trocava pernas como se tivesse de sapato alto. Atravessou a rua e um traveco gritou “saí fora que aqui tem dona”. Alexandra riu, não disse nada e continuou andando. Estava atraída pela brisa marítima. Pena que a lua era minguante, e  o céu estava carregado de nuvens e sem chance para estrelas. Bom, porque ela reluzia e seu suor, uma mistura de álcool, cigarro e perfume barato atraiu até os cachorros e gatos abandonados ao relento. Seguia “sem lenço e sem documento”, e não era dezembro. Pouco importava os perigos da madrugada. Ela queria ver o sol chegar deitada na praia. Lá acordou com lambidas de um vira lata em sua boca. Toda babada de saliva canina. Com areia até na calcinha. Era eu, defronte ao mar com uma puta dor de cabeça e vomitando as tripas, porque só bebi, e mais nada.



Por Madalena.

Dos tempos 6.



Como uma mãe deixa de amar a um filho. Tem mães desnaturadas que parem e deixam por aí, jogam a cria na primeira cesta de lixo. Tem mães que nem chegam a parir, abortam, dão um fim. Às vezes é até melhor que seja assim. Se não vai cuidar, se não tem como alimentar, se não vai dar carinho é melhor interromper a gravidez ou dar para criação. Mas para mim, nem um animal deve ser rejeitado, de certa forma dar a criança a outra é uma rejeição. As vezes ter ou não ter não é uma escolha, eu tive uma amiga que foi estuprada ainda moça, engravidou e odiou a criança. Ela via aquele ser indesejado crescendo em seu ventre, o que fazia lembrar do trauma, da violência sofrida. O feto não tinha culpa, mas teria algo do algoz. Como conviver com tamanho sofrimento, ela não suportou, ninguém a sua volta suportou, deu a criança assim que nasceu a um orfanato. Aborto era impraticável na época, já existia, mas seus pais condenavam. Para azar das duas, criança e mãe. Ela não pode desenvolver afeto pela cria, era só raiva. Era compreensível sua rejeição. Já eu, desejei ter filhos, me imaginei desde das brincadeiras com bonecas tendo e cuidando dos meus. Casei e os tive com o amor de minha vida, meu primeiro e último homem, o pai dos meus filhos. Tudo como manda o figurino. E João, ficou muito feliz quando soube que eu estava esperando nossos filhos. Foi uma festa quando Marcinho nasceu, com direito a meladinha e charutos. Quando Joana nasceu, a festa foi maior, ele já estava empregado e como dizem pais se identificam mais com filhas do que com filhos. João então, sempre foi um pai e tanto, sempre acobertando as travessuras dos meninos. Sempre antecipando os presentes de natal, da páscoa e do dia das crianças. Qual criança não queria um pai desses, mais que um pai, um amigo, um palhaço enchendo de alegria o nosso circo particular, o mágico tirando coelhos da cartola e hipnotizando quem estava em volta. Para eles João sempre foi o maior herói de todos os gibis. Já morri de ciúmes, porque para os meninos eu sempre sou a estraga prazer, sou eu que imponho os limites e os trago para o chão. J. J. e Joana então, sempre me deram trabalho uma duplinha perfeita. Marcinho não, sempre mais centrado e comigo, um menino de ouro. Ter filhos, os filhos, eles não foram planejados, como as crianças de laboratório de hoje. Não existia métodos contraceptivos, a concepção era uma dádiva, algo natural e esperado. Era também desejado, uma vez que estávamos casados. A qualquer momento eles viriam. E vieram. Os amei desde de antes, os amei desde os sonhos e brincadeiras da infância. Mas como dizes “os filhos crescem e os problemas triplicam”. Educar dar trabalho, ser referência, ensinar o caminho a seguir, o melhor rumo que devem tomar. Se dependesse só de mim, jamais sairiam das minhas asas, estariam até hoje amarrado na barra da minha saia. Se dependesse de minhas vontades jamais sairiam de casa, jamais enfrentaria esse mundo de cão, jamais seria mal influenciados. Por mim, eles não cresceriam, mas sei que isso é besteira minha, eles iriam crescer um dia, eles iriam cortar o cordão umbilical, eles iriam trilhar as próprias vontades. A se eu pudesse continuar colocando-os de castigo e forçando-os a me obedecer. Mas não posso, eu sei, e meu coração se comprime. Ser mãe, realmente é padecer no paraíso. Joana sempre foi rebelde, primeiro cortou o cabelo das bonecas as deixando careca, depois rasgou o vestido, fugiu de casa com 15 anos dizendo que ia conhecer o mundo lá fora e para acabar me revelou tudo aquilo. Uma decepção atrás da outra, um sofrimento seguido de outro, uma relação tão desgastante. A sorte foi que João sempre acalmava os ânimos, jogando um balde de água fria na fogueira em chamas. Filhos pensam que os pais não sofrem, filhos pensam que é ruindade e caretice todas as preocupações. A mais nova dela é que não se cansa de me colocar de frente com todos meus preconceitos. No início, pensei, como tudo que vem dela, ela só quer me desafiar, se aparecer, dizer que cresceu e que eu não posso mais mandar nela. Não foi bem assim, eu tive que engolir. Eu sempre deixei claro que só engoliria, que não aceito nos outros quanto mais em filho meu. É um pecado, é uma aberração! Quase morro de infarto quando ela veio com mais essa novidade. A como rezei, joguei praga também. Era só um modismo da adolescência. Me confortava pensar assim, mas passaram meses sem nos falar, chegou a um ano e meio. Mas uma hora tive que encarar os fatos, tive que ceder, tive que ouvir e me esforçar para entender. Porque tinha uma pergunta que não me saia da mente “onde foi que eu errei!”, essa menina não podia ser normal meu Deus!? Mas não. Fui até ela, a pedido de J.J., que por sua vez, tentou me convencer por A + B que a errada dessa história era eu, dizia “que mulher mais teimosa essa minha!” e continuava “criatura desempaca, é nossa filha, o que mudou. Eu a amo e quero vê-la feliz não importa do lado de quem, da maneira que for, sua felicidade é a minha! Ah, deveria ser a sua também Maria!”. Eu remoia tais palavras, e reconhecia em partes o meu erro, mas ainda não sossegava. Como foi difícil para mim compreender tudo aquilo. Me sentir tão mal por rejeitar minha filha. A rejeitei depois de crescida, sem um motivo de estupro, ou PR não ter vindo em boa hora. A rejeitava por orgulho, por vergonha, por ser tão preconceituosa. Nesse período que ficamos sem nos falar foi como se algo faltasse em mim, era um vazio que sugava minha vida. Nem os abraços de J.J. me supriam. Finalmente a conversa, Joana fez uma retrospectiva de todos os indícios que ela nem sabia que era um sinal de sua diferença. Como sempre fui atenta e os vigiei de perto, eu desconfiei, mas não quis alimentar. A dúvida vinha em pensamentos que eu fazia questão de dissipar feito fumaça no ar. Carros à boneca, rua à casa, isolamento a socialização, viagens à festas comemorativas. Ela nunca perdia a oportunidade de estar distante de mim. Agora entendo, ela me fez entender, eu reprimia e a machucava. Sem querer era eu que mais a fazia sofrer. Minha repressão era um combate ao risco que eu sabia que ela corria. Como pude ignorar o sofrimento de minha menina, não bastava o mundo a condenando, a crucificando, a rotulando. Fui perversa, algo incontrolável, que eu não sentia. Eu também sofria, e sofro. Nunca soube lidar com tamanha contradição. Mas respondi: Eu a amo e apesar de tudo nunca deixei de te amar. Senti sua falta em cada segundo que estivemos distante. Desabamos em lágrimas, nos abraçamos e olhamos novamente uma nos olhos da outra. Ela se desculpava a medida que explicava e finalmente eu me retratei: filha quem te deve desculpas sou eu, pela primeira vez na vida, estou fazendo a coisa certa. E rimos, e choramos, e dessa vez foi ela que me afagou e me deu colo. Eu a pedir, minha filha, obrigada por me ensinar a viver. E a partir desse dia, reconstruímos os laços, a confiança e a amizade. Celebramos o amor, aprendemos com o amor. Finalmente “amei o outro como a mim mesma”, e um outro que é parte de mim e outros que não precisam ser parte de mim. Fez-se valer os ensinamentos de Cristo.



Por Maria.



domingo, 30 de maio de 2010

Dos tempos 5.



Joana, e não Juana. É sempre assim, em todos os lugares que tenho que me apresentar. Por cansaço acabo deixando para lá. Tudo bem, pode me chamar de Ju, Jô, é apenas um detalhe. Um detalhe, de quantos detalhes a vida é feita? Quantas coisas podemos deixar passar? Tem coisas que não podem ser mais postergadas. Como? Ah, contar para família que é diferente do convencional. Um processo, um sofrido processo. Mais como sou ansiosa e prematura não esperei por muito tempo. Para quê adiar mais, algo que eu descobrir tão cedo. Por que me negar e esconder. A demora foi só encontrar alguém igual a mim, como na música de Pato Fu “eu queria tanto encontrar uma pessoa como eu em quem eu pudesse confiar e contar alguma coisa sobre mim!”. É foi assim, nos encontramos e eu contei tudo sobre mim. Um tudo que era estranho e que eu morria de medo. Eu tremia só de pensar que alguém podia ler meus pensamento e seguir o meu olhar. Em relação aos pensamentos era pura “teoria da conspiração”, “paranóia” mesmo. Mas, o olhar, me denunciava. Às vezes eu sentia que estava escrito em minha testa, que todos desconfiavam e sabiam, que alguns tinham até certeza. Como uma marca, e era, e é. É o estigma que nos imputam e nos é da pior forma possível internalizado. Uma marca, que não é como dizem “uma escolha”, “uma opção”. É algo que está além do biológico e também do socialmente construído. Quando se procura uma explicação, simplesmente não se acha por aí. Só sei que não é como uma “tatuagem” que simplesmente queremos na nossa pele, por gostarmos da arte ou por puro modismo. Não é algo passageiro. E nem sei se com palavras é dimensionado. Algo que digo é que estar dentre as coisas acima do “bem” e do “mal”. A última coisa que pode ser e ter é o jogo dos contrastes, por mais que sejamos condicionados a bailar cegamente por linhas tênues e frágeis. Sim, é totalmente subjetivo. É no campo dos sentimentos que tudo se torna sensato. Sim, “sentimento” e “sensatez” se harmonizam. Cessa-se a guerra interior. Por um momento é claro, nós sentimos o bem de estar em paz. Paz consigo e com o mundo. Graças ao “grito”, um grito inicialmente sutil, quase mudo, rouco e certamente regado de lágrimas. O quão difícil é se enxergar para além do que se imagina e espera que você seja. Bem além das expectativas: casar, ter filhos, não contrariar os valores da família nuclear cristã. Ser banalmente “normal”. Sim teimo em usar o termo “normal”, pois me refiro aos expectadores, não a mim. Normal para quem? Normal quando? Não trilhar os trilhos convencionais é “loucura!”. Sim, mas apenas nas mentes mais perversas e doentias. Sim, se não existissem “sentimentos”. Sim, si não fosse mais do que mera “mudança de valores”. Adoro a expressão “desde que o mundo é mundo” para contrariar os “novos e velhos valores”. Tudo não passa de reinvenção, sinto informar, mas “não descobrimos a roda”, vai ver que a “roda” já existia, só não era chamada de “roda”, só não a utilizavam para locomoção e etc. e tal. O que estou dizendo é que os “detalhes” quando “acortinados” se acumulam e viram “chagas fatais”. Feridas no seio da humanidade. Das famílias, das sociedades, das culturas. A insistência em “tapar o sol com a peneira” pode acarretar na morte, vista como fim último e mais temido. Morte dos subjugados, dos ‘diferentes’, dos ‘anormais’. O ato mais desumano, consciente ou inconsciente cometido contra “o outro” também humano. Os diferentes são remetidos a condição de “seres vagantes”, indefinidos, párias, dissidentes. Fora assim com os negros africanos, com os índios, com os judeus, com as mulheres, com os homossexuais, com os pobres...com toda sorte de “diferentes”. A questão é o quanto são “diferentes”, será que a “diferença” não fora para atender os propósitos de uma “gente” que se sentia, por ora, mais “gente” do que as “gentes” citadas? Eurocentrismos, homofobismos, xenofobismos, racismos, machismos, cristianismos...categorias a serviço dos interesses (de?), às custas das vidas (de?). E o pior é vê-las verborragiadas e internalizadas nos atos discriminatórios de cada um. E o olhar, ah, esse não dá para disfarçar, nem neste sentido.


Por isso, resolvi não menosprezar os “detalhes e olhares”. Já sabia que seria mais fácil com o papai, meu velho João sempre foi moço para entender e confortar. Sempre meu cúmplice, sempre o meu melhor amigo. Já a mamãe uma “carrasca em figura de gente”, mas eu sempre soube o porquê da vigilância e do medo. Tive que descobrir os motivos das cobranças e implicações, nossa relação nunca foi das melhores. Primeiro foi à briga para que eu me tornasse igualmente uma “rata de igreja”, depois os estudos “nada de nota baixa” (como se nota fosse importante), depois em relação a namoro “nada de namorar antes de passar no vestibular, namoro desvia a atenção” (pura ironia). Era uma proibição atrás da outra. Geralmente eu obedecia, mas depois, não vi mais sentido em tudo aquilo. Parecia uma vida que não era minha. Sem prazer, só obrigação. Aí entra o meu herói para me tirar dos castigos quado comecei a ir de encontro a tanta regra. Meu pai nunca bateu em mim, ou no Marcinho. Não é que ele passava a mão pela cabeça, ele conversava e conversava sério, olho no olho. Ele nunca desautorizava a mamãe, mesmo ela estando absurdamente equivocada. Até nisso eles eram parceiros, na criação. Mesmo mamãe me considerando “um caso perdido”, gostei do resultado final, somos bem criados. Tão, tão bem criada, que destoei em quase todos os ensinamentos da mamãe. Lembro das “n” tentativas de me ensinar a cozinhar e até hoje não sei fritar um ovo. Isso é o de menos. Sua maior “decepção” é que a fiz “pagar a língua”. Tudo que ela não queria, era ver seu telhado estilhaçado, mas quando se remetia aos telhados dos vizinhos, não era nada generosa. A coitada pagou. Juro que não foi de propósito. Sempre combati suas fofocas, logo após as missas dominicais (um pecado, nada sentido), sempre que sua língua ou olhar fuzilava a vida alheia: “Olha a filha de Paulo engravidou, sem concluir os estudos. Sabe quem é o pai, é o maconheiro do sobrinho da Geralda. Você não sabe João (meu pai nunca dava ouvidos), a neta da Hermínia agora deu para lésbica. Essa juventude esta perdida. E a culpa também é dos pais que não orientam. Tudo virando o que não presta. Não querem mais nada! Nada...”. Isso era todo o dia, ás vezes meus tímpanos doíam de ouvir tanta barbaridade. Eu a alertava, “sabe mãe que uma hora eu também ‘viro’ drogada, puta, sapatão. Aí quero ver o que senhora vai falar. Respeita a vida de cada um e viva a sua, sem julgar os outros”. Não adiantava, ela esbravejava comigo, ficava sem falar, ameaçava, fechava a cara. Depois voltava com uma nova fofoca. Ela só não queria se ver igualmente julgada. Uma pena, logo, logo, a brincadeira tomou fundos de verdade. E foi um Deus nos acudas, e o meu herói mais uma vez, me salvou. Não é que a mamãe seja uma “bruxa”, é que ela não sabe lidar com os próprios preconceitos. Ao longo de sua vida, ninguém a ensinou a desconstruí-los (nem a convivência com o papai). Ela foi reprimida e não teve outra saída, não conheceu outras formas de vida, não se permitiu, simplesmente hesitou e rotulou de “pecado”. Amar só era possível se fosse alguém do sexo diferente e depois de casada. Caso contrário era “pederastia”, “prostituição”, “promiscuidade”. Nunca felicidade. Depois da tempestade (que foi bastante reincidente). Só quis uma resposta: “Você deixou de me amar?”.



Por Joana.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Dos tempos 4.


Ai, to as voltas com o vestibular, já pensei em fazer mil coisas. Das mil, eu estou indecisa entre umas três, quatro. Bem, pensei em algo do mundo da indústria cultural inicialmente. Não sei, artes cênicas, ou cinema. Pensei em moda também, sou estilosa e criativa, gosto de inventar e fugir do padrão, não gosto muito de me encaixar em uma ‘tribo’, as vezes, inspiro meu look em um pouco de tudo, misturo moda retrô com tendências futuristas que lembram os mangas japoneses. Por papai eu faria direito, mas deixei bem claro que estou ‘foraaa’! Não quero ser uma humanista feito ele, mergulhado nas questões humanas e tão distante das pessoas ao seu redor. E olha que ele se especializou em direitos humanos! Mas às vezes acho que ele não é nada humano, comigo então, só brigamos, só me vem com seu ar superior, demarcador de terreno, dizendo em alto e bom tom “o pai aqui sou eu!”. Eu pirraço, retruco, digo “ah é, não me diga, não parece, mas estou cansada de saber!”. Ele fica puto, ele me deixa puta também. Aff, oh relação chata essa de pais e filhos, ele vive berrando “vê se cresce e aparece!” Não sei por que fala isso, eu to crescendo oras! E em breve, ganharei o mundo e as “paradas de sucesso!”. Ele não dá a mínima força para meus ‘devaneios’, que para mim estão mais para “sonhos”. Disse que era para eu ter cuidado com a escolha do vestibular, pensar direito porque têm decisões que tomamos agora que podem influenciar nossa vida inteira. Ele fala isso porque é careta e às vezes o acho frustrado! Ele disse que fez a escolha profissional certa e que ama o que faz e ainda de quebra ganha dinheiro com isso. Mas não sei não! Algo eu tenho que reconhecer, que é a sua preocupação, ele não me impõe ‘direito’ por causa do dinheiro em primeiro lugar, ele se preocupa comigo e tem medo de me faltar, assim como minha mãe. Então, me sugere com aquela sutileza que lhe é peculiar para que eu escolha uma profissão reconhecida no mercado de trabalho, que dê para eu me virar depois da primeira formação. Em partes entendo, mas não me conformo! Qual é, como os padrões sociais vão mudar se a gente não se jogar e se propor a fazer diferente? Ou seja, escolher uma profissão que não seja clichê e que principalmente eu não tenha que ter patrão e ter que andar ‘arrumadinha’ vinte quatro horas. Ah, dane-se, mas vô apostar na liberdade, a liberdade é a porta da felicidade e da realização dos meus sonhos. Decidir, decidir, eu ainda não decidir, mas o vô João me tranqüilizou bastante, ele me contou que no seu tempo não tinha vestibular que seu cargo foi indicação política, mas mesmo assim ele se interessou pelo estudo bem depois quando já tinha vestibular. Ele disse que fez a prova pensando que estava prestando vestibular para música (quase tive um ataque de risos nessa hora, eu não esperava isso do vovô), só se deu conta que se submeteu ao exame para administração quando viu seu nome na lista dos aprovados. Eu perguntei como assim vovô agora explica. Ele disse “meu amor não tem muito que explicar minha escolha não foi por amor, eu não tinha muita opção pois já tinha família para sustentar, e já trabalhava sem especialização na área administrativa. Então surgiu a oportunidade e eu agarrei para minha sorte e estabilidade futura. Não me arrependo foi necessário e, a música, a, ela só foi um estímulo que resgatei dos meus tempos de moço (muitos risos)”. Meu avô é um sábio, depois dele quem mais me identifico na família é a tia “Jôjana”, que era como eu a chamava na infância. Ela sim aprendeu com meu avô, já meu pai parece que foi criado debaixo da saia de minha avó, pois nunca vi tão retrogrado! Aff, e eu é que tenho que agüentar, paciência, paciência!!!


Por Bia.


terça-feira, 4 de maio de 2010

Dos tempos 3.





Quando terminamos nem deu tempo para sofrer. Eu disse, “foi rápido e intenso”. Era natural que ele partisse de súbito como entrou na minha vida. Falando assim pareço resignada com o fim. Mas é que desde o início por mais surpreendente que tenha sido ele me apareceu como um ser livre “lindo, alto, sorridente” e livre. De certa forma nosso amor foi livre, foi impressionante minha capacidade de superar, de não me apegar por muito tempo, de não ficar remoendo o fim. Eu fiz questão de guardar as coisas boas, cada momento, cada segundo, cada milésimo de tempo ao seu lado. O tempo naquele mês não existiu para nós, simplesmente passou sem nos darmos conta. O que era noite, o que era dia, não sabíamos. Mas preferíamos o friozinho da noite, a companhia da lua e das estrelas, o barulho das ondas naquela praia deserta e todo mistério e sabor que só a noite tem. Sabe, não é só a tatuagem que tenho aqui gravada no braço direito que não me deixa esquecê-lo. Volta e maia me pergunto “será que ainda o amo?”, mas já se passou tantos anos. Eu lembro dele e meu peito se enche de alegria, não sei como mas vejo os meus olhos brilharem. Eu usava a lembrança para me divertir com os “bobinhos” porque quem despertava o meu sorriso fatal era ele, só ele. Bem foi assim por um tempo. Não me envergonho, porém confesso a perversão. Repito, não houve tempo para sofrer quando terminamos. Mas sou humana e J.J. era, por tudo, um homem bem diferente para o tempo. Ele não foi machista e criou mil e uma situações para provocar o término. Se bem que a Ritinha era bem assanhada pro lado dele, mas ele não dava à mínima. Sempre me dizia “Duda hoje você me basta, me completa e me faz feliz”. E eu é claro, ia nas nuvens. J.J. não era nem um pouco machista se comparado com os outros rapazes e as poucas vezes que era reconhecia. Era engraçado, ele odiava atitudes machistas e quando sua auto-vigilância falhava ele começava a xingar a igreja, os valores cristãos, a instituição família. Em relação a isso era um pouco contraditório, ou era eu que não entendia porque tanta fúria. Mais tarde entendi que minha falta de compreensão era o que Marx chamou de “alienação”, mas deixa pra lá, eu respeito e prego certos valores dos tempos da minha mãe ainda hoje. Então hipocrisia a parte.


J.J. não foi covarde, pelo contrário ele foi sincero e honesto comigo e com seus sentimentos. Ele disse “broto, conhecer você foi uma das melhores coisas que já me aconteceu. Nós nos achamos e isso foi especial. Foi rápido eu sei, mas eu sentir que rolou um sentimento não sei se foi amor, mas sei que foi e é verdadeiro. Eu nunca vou te esquecer ‘para sempre’”. Ele não precisou dizer adeus, no fundo sabíamos que era impossível partir de todo. Eu deixei ele falar, a ‘ficha’ demorou para cair. Eu só ouvia, sem mexer um músculo do rosto, quanto mais derramar uma sequer lágrima. Depois revendo a cena perguntei-me como conseguir ser tão fria. Muitos anos passaram e ainda não obtive resposta. Do pouco que ouvi do que ele ainda tinha a dizer, lembro algo como “vou viajar para Guiana Francesa, tenho um tio que mora lá, passarei um tempo pra ver qual é!”. Depois, bem depois, constatei a informação de fato. Finalmente J.J. parou de falar, ficou na minha frente esperando um abraço, quando viu que não tive reação me deu um beijo na face e desapareceu. Depois disso acho que o vi umas três ou quatro vezes não me recordo bem.


Ele sumiu e por horas continuei perplexa, petrificada sentada no banco da Praça 7 de Setembro. Caiu a noite, sentir a umidade do sereno batendo em mim e continuava ali. Sem lágrimas, só um turbilhão de pensamentos. Do jeito que era com o João, sem regras, sem limites, não dava margens para expectativas e até mesmo ‘duração’. Ainda assim, naquele momento, em imediato, eu não esperava. Talvez tivesse imaginado um fim, vários fins. Mas não naquele dia, naquela hora e naquele lugar. Pensei que já era madura o suficiente, mas só naquele instante me dei conta que não. Não existia maturidade para o amor, para amar. Mesmo quando se cuida e não quer sofrer e ver o outro sofrer. Ainda assim, me decepcionei por alimentar esperanças. A esperança da felicidade duradoura, quase plena. Naquela época amar e ser amada era tudo, as demais coisas da vida eram deixadas para segundo plano, pelo menos para nós. Com ele eu aprendi a ser “nós”, vai ver que foi por isso que foi tão difícil voltar a ser “eu”, mesmo um “eu e me” (o que não garante o ‘nós’). Eu me senti um casulo ao longo do mês que passamos juntos, sofrendo mil e uma metamorfoses até atingir o estágio inicial da borboleta que sou hoje. O termino fez parte disso. Me senti dialética agora. O fim foi a negação, a antítese antes da síntese borboletiana. E é sabido que as borboletas vão mais longe, vivem se adaptando ao meio ambiente para preservar a existência. Em relação a isso me tornei uma “borboleta as avessas”, uma borboleta inconformada com o meio que luta pela transformação deste. Então não me basta ser só borboleta e foi ali que me dei conta. O João se foi e eu também poderia ir, e se o amava ainda assim poderia me permitir novos amores, novos horizontes. Sem lágrimas (não muitas!), sem sofrimento (só o suficiente para se perceber na situação e me libertar). Afinal foi com ele que aprendi a “correr menos e a rir mais”! Sem espaço (ou minimizando) para dor e buscando mais e mais o meu bem viver.



Por Duda Duarte.

Dos tempos 2.


A cada dia que passa nossa relação fica mais difícil. Bia tinha cinco anos quando Laura faleceu e a partir dali era só eu para cuidar, me preocupar e ensinar tudo mais. Tínhamos o mundo pela frente, só eu e ela. Eu me sentir tão amedrontado, tão desprotegido com esta situação. Ela só tinha a mim e eu só tinha a ela. De certa forma estávamos sós, sem chão, sem nosso Porto Seguro. Mas foi esta situação que inexplicavelmente vem me dando forças até agora. Me deu mais força naquela época. Eu estava atordoado, nada fazia muito sentido. Mas eu não podia ser egoísta, não naquela hora. Aprendi muito com Laura, a vida a dois é uma sensação de pertencimento faz com que nos desprenda de nós mesmos. E naquele momento eu tive que ser acima de tudo um pai. Um pai que a partir dali seria pai e mãe. Nos anos da infância foi mais fácil que agora. Mal nos falamos e quando nos falamos é para brigar. Não posso abrir a boca que ela já me vem com ‘quatro pedras nas mãos’! Me pergunto onde está aquela menina doce, o que esta acontecendo, o que foi que eu fiz? Será que sou tão mau pai assim? Sei que sou rígido, sei que ‘nego’ mais do que permito, sei que ajo assim por medo. Eu tenho medo que ela se machuque, que alguém a faça sofrer. Eu tenho medo das más influências, eu tenho medo que ela se deslumbre e se deixe levar. Por isso “proíbo”, proíbo quase tudo. Sei o quanto isso é insensato, sei que é um pouco por isso que estamos tão distantes agora. As vezes me falta fôlego, palavra, ação. Na última discussão ela jogou na minha cara “do que você tem medo, não quer que eu seja como você? Não confia na criação que me deu?”. Não tive reação, ela me desarmou, essas perguntas foram um choque! Ela esta coberta de razão, a criei bem, ela não é uma ‘Maria vai comas outras’, lhe ensinei valores e princípios e o tempo e todos a sua volta (nossa família) ajudou a formar o seu caráter. A admiro por ser exatamente o oposto de mim. Ela não é nem um pouco acomodada e covarde. Já eu me conformo com pouco, com o que convém. Ainda bem que puxou à Laura, com todo seu ímpeto. Ela é mais emoção, já eu sou razão. Ela não tem medo de arriscar para perder ou para ganhar. Já eu evito até jogar na loteria, para não me pegar sonhando em o que faria se ganhasse o prêmio. Nossas diferenças nas brigas ficam tão evidentes. O ruim é que reconheço sua razão, mas não ‘arredo o pé’ da minha. Eu não recuo. E sei que isso não é bom. Temo perder o controle, mas esse meu ar autoritário não me leva a nada. Tento achar uma maneira de reconquistá-la, de trazê-la para perto de mim, mas nada vejo, e me angustio. Ela também é fogo, vive aprontando, e em relação a isso, não posso fazer vista grossa – depois o ‘espinho cresce e me fura’, e aí!? Tô perdido, sinceramente não sei o que fazer. Espero que ela cresça logo, que saía dessa obscuridade que é a adolescência e que reconheça todo esforço que faço para criá-la. Que nós voltemos a ser amigos, só amigos, sem heroísmo. Ela também jogou na minha cara que não sou mais o seu herói. Posso ouvir a sua voz estridente ecoando nos meus tímpanos “acorda pai estamos no mundo real não existe contos de fadas e eu estou longe de ser sua princesinha!”. Ah, doeu ouvir isso! Eu a chamava de “princesinha” quando era criança. Tá aí a resposta – Os filhos crescem e os pais (pelo menos eu não sou exceção) não acompanham o ritmo, ‘era criança’ e esta se tornando ‘uma mulher’. E agora quem tem que aprender sou eu, Bia me ensina, papai também. Mas confesso em relação a isso nunca tirarei nota 10!

Por Marcio.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Dos Tempos 1.


João Jorge é um caso antigo, foi rápido, passageiro. Desses que nos pegam de surpresa. Nos conhecemos na antiga Estação de Trem, aquela que ficava lá no centro da cidade. Hoje não existe mais, ou melhor, existe a transformaram num museu de antiguidades. Eu estava atrasada, sempre atrasada para variar. Corria em disparada em direção a Plataforma “C” para pegar o trem para Zona Sul. Não sei como, com toda a pressa ouvi uma voz grave que lembrava a do locutor de rádio-novela Aroldo Andrade, por quem todas as moças da minha idade se derramavam de amor. A voz perguntou ao engraxate: - esta é a Plataforma ‘C’? O engraxate respondeu: - ‘C’ de coração, de carinhoso e de timão. O moço não entendeu, nem eu. O moço o interpelou: - como, ‘C’ de timão? E o engraxate disse: - sim, timão! Corintias do meu coração! Eu ouvi o diálogo e me surpreende com a resposta, olhei para trás e os dois estavam rindo. O moço parecia surpreso e encabulado. Deu tempo continuar correndo e pegar o trem. Para minha surpresa o moço perdido na plataforma pegou o mesmo trem que eu e ainda sentou do meu lado. Eu estava agoniada devido ao atraso e pensando em um monte de bobagens. Mas assim que ele sentou do meu lado foi inevitável não rir ao lembrar da resposta do engraxate ‘ “C” de timão’. Também foi inevitável não reparar naquele broto do meu lado. Primeiro porque gostei do cheiro da colônia que ele usava, lembrava capim-cidreira com um toque cítrico de limão. Depois por tudo, ele era um verdadeiro pão: alto, esbelto, cabelo castanho claro, nem moreno, nem pálido, muito menos amarelo desbotado, seu penteado lembrava o de Elvis e a barba feita enaltecia sua pele de bêbe. Estava usando uma calça jeans rasgada, blusa 3/4 xadrez de botão, e é claro não podia faltar a jaqueta de couro preto, que era moda. Seu sorriso não me saia da memória, olhei longe e suspirei profundamente, como se eu não estivesse ali. Não sei se ele percebeu, o mundo parou mesmo foi quando ele me perguntou as horas. Estranho, pois ele portava um lindo relógio de pulso. Mas eu fingi que não vi, tentei ser natural, olhei para o braço e disse com a minha voz mais doce “nove e meia”. Isso, foi só isso! Mas, mesmo muito “the flash” nossos olhares se cruzaram. Eu gelei, meu coração foi a mil. - Mel, os olhos dele são arredondados e mel. Blueblue...ai como ele se parece com o Erasmo Carlos! Depois que ele ouviu o horário exclamou “droga, tô atrasado”. Eu disse “eu também”. Ele se voltou para mim e disparou aquele sorriso de Apolo “hum que feliz coincidência”. Muda, paralisada, fiquei. Eu queria falar algo, mas o nervoso não me permitia. Então, ele não mais esperou por resposta e continuou “eu vou descer no Monumento e você?”. Gaguejei, “ê, eu, eu vou descer um ponto depois, na Viana Corrêa”. Se fez um silêncio e ele disse “ah, tem uma sorveteria famosa por ali né?”. “éh” foi o que eu disse bastante descabriada. Ele continuou “esta um calor, a cidade esta cada dia mais vertical, quente, sufocante. Quer tomar um sorvete comigo?”. Antes que eu respondesse ele se antecipou “não vou tomar muito o seu tempo, nos refrescamos e voltamos a rotina, também não posso demorar!”(mera estratégia de convencimento). Olhei para o relógio já eram 9:45 e eu tinha uma entrevista as 10:00 horas. A sorveteria ficava próxima ao Centro Empresarial, mas em 15 minutos mal dava para eu chegar lá. Tomar um sorvete com o lindo e charmoso desconhecido, ou ir à entrevista de emprego? Óh céus que mundo cruel, pensei comigo. Ele pode ser o amor da minha vida, ele pode ser só mais um ‘cafa’ também. E o emprego?! Secretária de um escritório de arquitetura. Me agrada, só a parte artística. Aiaiai. Ele interrompeu meus pensamentos “e então, vamos tomar o sorvete!”. Mordi o meu lábio inferior, apertei as mãos uma na outra, olhei para o teto do trem, respirei e num rompante respondi “tá bom, vamos tomar um sorvete”. Foi maravilhoso, não tomamos apenas um sorvete, a conversa estava tão boa que tomamos três. O tempo passava e entre risos nem nos dávamos conta. Ali, fiquei conhecendo o João o encantador João Jorge. Seu papo era envolvente e tínhamos vários gostos em comum: rock’n roll, lambreta, cinema, independência, sorvete! Uma empatia só. Perdi a entrevista de emprego e ganhei um broto. Um mês de amor e de luar. Rápido e intenso. Terminamos mas não tem como esquecê-lo, o tenho gravado em mim. Minha primeira tatuagem um coração com as iniciais ‘JJ’ dentro. Ai João Jorge você bem que podia ter deixado uma marca menos ‘brega e cafona’ em mim. Quem faz isso nos tempos de hoje? No meu tempo também era moda, era uma prova de amor. Não me arrependo o encontro com o João me fez crer que era possível correr menos e rir mais. Me desliguei da ‘rotina’ e do ‘moral e politicamente correto’. Me senti livre, amante e amada. Descompliquei a vida naquele encontro singular!

Por Duda Duarte.

terça-feira, 2 de março de 2010

Dos Tempos...

Só no aniversário de 80 anos foi que ele se deu conta. Definitivamente se deu conta. Mas a muito que não sentia mais pressa. Para quê? Quando jovem fora ansioso e onde chegará assim? Seu coração apertou tanto que foi parar na mesa de cirurgia cardíaca. Seu presente de 55 anos foram duas pontes de safena. A ansiedade da juventude, a pressa para vencer na vida, prover a família, dar o melhor para esposa e filhos. De que serviu tanta preocupação? Todos cresceram, todos formaram, todos construíram família. E sua mulher se dedica aos netos e aos almoços de domingos ensolarados. Porque nos dias de chuva ninguém arreda o pé de casa. Então a vida se resumiu a isso? E para quê? Sim, não fora tudo sacrifício. Sempre gostei de acordar cedo e pagar as contas em dias. Eles cresceram sem dar muito trabalho, nisso Maria sempre foi um esmero. Eles se foram. No início tive ciúmes, mas entendi. Para mim foi mais fácil que para ela. O desapego só vem com o tempo, com o tempo e com a confiança. Eu confio neles e eles nos admiram por isso. Então eu tive tudo. Missão cumprida. Seria fácil se fosse assim. Marcinho, o mais velho, outro dia veio me queixar da Bia que esta mocinha e pretende viajar com o namorado no feriadão. Ele me perguntou o que fazer?! Eu ri, e disse: meu caro os tempos são outros, abra a mente antes de sofrer. Com a sua irmã Joana, não lembra, foi um Deus nos acudas. Mas aí de mim que sempre fui um homem à frente do meu tempo. E ainda tive que aguentar os desmaios de sua mãe e todo aquele 'blá,blá,blá' de pecado. Eu pensei, cá com meus botões, vá à merda a falação se ela a ama que seja. Eu também a amo. E olha que para o tempo isso deu muito pano para manga. Mas se alguém não tomar a iniciativa tudo continua como estar.Larga a mão de ser turrão, você de bico aqui e minha neta de bico acolá. Deixa estar, só avisa para não esquecer de usar camisinha. E deixa estar. Rir comigo mesmo sentado na poltrona do vovô, só observando a movimentação. Mas depois veio aquela angústia. Ah, ter que esperar pelos designos do tempo é um horror. Eu também queria viajar. Quem sabe partir de vez. Para o além mundo. Quem sabe Maria vem comigo. Para que ela ficaria aqui, essa vida já é sem sal, imagina só sem mim. Ela morreria. Ai droga. Parece que eu não aprendi. Já tenho mais de 80 e continuo assim, roendo unha, ansioso de dar gastura. Ai existência, só me resta esperar. Mas foda mesmo é que agora me sinto o retrato daquela música de Raul Seixas "Sentado numa poltrona com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar". Exceto pelos dentes, há muito que joguei a chapa fora. Risos.

Por João Jorge.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Peremptório?

O que essa palavra significa?

Dizer que algo é peremptório, segundo o Aurélio, é ser "decisivo", ou "termitente". Sendo classificada gramaticalmente como adjetivo, que por sua vez, pode ser entendido como palavra que qualifica o nome(substantivo). Isso segundo qualquer gramática vagabunda e uma conhecedora superficial do assunto.

Se peremptório é "decisivo", eis o meu sonho de estado, como sujeito que sou. Me tornar um nome qualificado adjetivadamente. Ser alguém munido de algo, sendo assim, para tanto preciso do intermédio dos verbos, tais como: "querer", "poder", "conseguir", "ser". Este último me atraí, ser um ser peremptório. DECISIVO. Assim eu queimo etapas e evito "querer", "conseguir" e de quebra, caso o "ser" com o "poder". Imagine, totalmente fatal. Sem mais, nem menos. DECISIVO.

Agora se o peremptório pender para o "termitente", eu sinto por ter ido consultar mais uma vez o oráculo. O que resultou em decepção. 1º O meu oráculo não merece esse nome, pois sua visão é limitada; 2º "termitente" não é difícil de deduzir para em seguida assimilar. Se "intermitente" é algo "não contínuo" que sofre interrupções, então "termitente" é algo finito, cabal. Se for isso mesmo, esse segundo sentido anula a minha feição em relação ao primeiro. Ser decisivo sim, ser termitente não. A não ser que a decisão seja um começo e não um fim. Dar para começar antes de terminar, dar para terminar antes de começar. Dar para ser peremptório sendo decisivo e termitente ao mesmo tempo.

Tudo isso porque essa palavra apareceu sem contexto em minha mente. Sem lembrança de ter sido dita ou ouvida. Despertou curiosidade, uma vez descoberta foi facilmente enquadrada, o sentido revelado logo se fez sentir. Me identifiquei com ela pela completa falta de intimidade. Me reconheci ao desconhecê-la. PEREMPTÓRIO, será que ainda estou falando da palavra.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Budapeste

"A poesia de verdade desaba por dentro...feito o amor"

A frase dita por Kriska a Kósta.

Como todo escritor ele queria flores sobre suas obras. De um convencimento e pedantismo sem tamanho. O que o torna inconsistente, contraditoriamente inconsistente.Na cena anterior Kósta vai ao lançamento de seu próprio livro. Um livro de poesias. Quer a atenção que de fato deveria ser sua e não do poeta húngaro que publicara o livro. Na cena que se segue, justifica as transgressões dizendo não concordar com o espetáculo que gira em torno do lançamento de um livro. Mas, o que transparece é que queria as glórias para si.

Em cenas anteriores é questionado pelo poeta sobre o fato de se esconder nas sombras. Uma mente brilhante que não quer dinheiro nem fama, essa era sua utopia! Ele queria ser um escritor destinando suas palavras a serviço da humanidade. Tal qual outro poeta húngaro, esse épico de um lirismo sem igual.

E quanto a inconsistência, ele não admitia que sua obra não passasse de um "So, So"! Que se traduz por "Assim, Assim". E que entendo como mais ou menos, que para o contexto fica melhor meio a meio. Ele era um estrangeiro versando poesias em húngaro, tentando ser um 'estabelecido', mas como bem disse Nobert Elias, não passava, até então, de um 'out-side'. Era um estranho de si mesmo. Brigando contra seu próprio ser. Isso me remete as primeiras questões filosóficas "Ser ou não ser eis a questão. E se sou quem sou?". Um tanto humano e biográfico algo que fica evidente no fim do filme. Que bom que o personagem não deu margem para a pergunta "De onde vim e para onde vou?". Embora ele tenha ido e vindo, vindo e ido.

O fator biográfico então fica evidente no final do filme. O autor do livro que gerou o filme aparece e pede um autógrafo a Kósta que estava de volta a Budapeste, agora com visto permanente. É o ápice da glória de Kósta.

"Um livro é como um contato íntimo entre duas pessoas" (Kriska).

José Costa confessa na última cena que Kriska sabia que Budapeste, o livro concebido e assinado por ele, só foi fecundado graças ao amor que ele sente por ela.

"Krisca sabia que agora eu lia o livro no qual eu escrevia" (Kósta Jsoze, José Costa).

Se ainda não assistiu vale a pena assistir. Tem bastante expressão simbólica. Essa última frase então, é digna de ser lida e visualizada.