sexta-feira, 4 de junho de 2010

Dos tempos 6.



Como uma mãe deixa de amar a um filho. Tem mães desnaturadas que parem e deixam por aí, jogam a cria na primeira cesta de lixo. Tem mães que nem chegam a parir, abortam, dão um fim. Às vezes é até melhor que seja assim. Se não vai cuidar, se não tem como alimentar, se não vai dar carinho é melhor interromper a gravidez ou dar para criação. Mas para mim, nem um animal deve ser rejeitado, de certa forma dar a criança a outra é uma rejeição. As vezes ter ou não ter não é uma escolha, eu tive uma amiga que foi estuprada ainda moça, engravidou e odiou a criança. Ela via aquele ser indesejado crescendo em seu ventre, o que fazia lembrar do trauma, da violência sofrida. O feto não tinha culpa, mas teria algo do algoz. Como conviver com tamanho sofrimento, ela não suportou, ninguém a sua volta suportou, deu a criança assim que nasceu a um orfanato. Aborto era impraticável na época, já existia, mas seus pais condenavam. Para azar das duas, criança e mãe. Ela não pode desenvolver afeto pela cria, era só raiva. Era compreensível sua rejeição. Já eu, desejei ter filhos, me imaginei desde das brincadeiras com bonecas tendo e cuidando dos meus. Casei e os tive com o amor de minha vida, meu primeiro e último homem, o pai dos meus filhos. Tudo como manda o figurino. E João, ficou muito feliz quando soube que eu estava esperando nossos filhos. Foi uma festa quando Marcinho nasceu, com direito a meladinha e charutos. Quando Joana nasceu, a festa foi maior, ele já estava empregado e como dizem pais se identificam mais com filhas do que com filhos. João então, sempre foi um pai e tanto, sempre acobertando as travessuras dos meninos. Sempre antecipando os presentes de natal, da páscoa e do dia das crianças. Qual criança não queria um pai desses, mais que um pai, um amigo, um palhaço enchendo de alegria o nosso circo particular, o mágico tirando coelhos da cartola e hipnotizando quem estava em volta. Para eles João sempre foi o maior herói de todos os gibis. Já morri de ciúmes, porque para os meninos eu sempre sou a estraga prazer, sou eu que imponho os limites e os trago para o chão. J. J. e Joana então, sempre me deram trabalho uma duplinha perfeita. Marcinho não, sempre mais centrado e comigo, um menino de ouro. Ter filhos, os filhos, eles não foram planejados, como as crianças de laboratório de hoje. Não existia métodos contraceptivos, a concepção era uma dádiva, algo natural e esperado. Era também desejado, uma vez que estávamos casados. A qualquer momento eles viriam. E vieram. Os amei desde de antes, os amei desde os sonhos e brincadeiras da infância. Mas como dizes “os filhos crescem e os problemas triplicam”. Educar dar trabalho, ser referência, ensinar o caminho a seguir, o melhor rumo que devem tomar. Se dependesse só de mim, jamais sairiam das minhas asas, estariam até hoje amarrado na barra da minha saia. Se dependesse de minhas vontades jamais sairiam de casa, jamais enfrentaria esse mundo de cão, jamais seria mal influenciados. Por mim, eles não cresceriam, mas sei que isso é besteira minha, eles iriam crescer um dia, eles iriam cortar o cordão umbilical, eles iriam trilhar as próprias vontades. A se eu pudesse continuar colocando-os de castigo e forçando-os a me obedecer. Mas não posso, eu sei, e meu coração se comprime. Ser mãe, realmente é padecer no paraíso. Joana sempre foi rebelde, primeiro cortou o cabelo das bonecas as deixando careca, depois rasgou o vestido, fugiu de casa com 15 anos dizendo que ia conhecer o mundo lá fora e para acabar me revelou tudo aquilo. Uma decepção atrás da outra, um sofrimento seguido de outro, uma relação tão desgastante. A sorte foi que João sempre acalmava os ânimos, jogando um balde de água fria na fogueira em chamas. Filhos pensam que os pais não sofrem, filhos pensam que é ruindade e caretice todas as preocupações. A mais nova dela é que não se cansa de me colocar de frente com todos meus preconceitos. No início, pensei, como tudo que vem dela, ela só quer me desafiar, se aparecer, dizer que cresceu e que eu não posso mais mandar nela. Não foi bem assim, eu tive que engolir. Eu sempre deixei claro que só engoliria, que não aceito nos outros quanto mais em filho meu. É um pecado, é uma aberração! Quase morro de infarto quando ela veio com mais essa novidade. A como rezei, joguei praga também. Era só um modismo da adolescência. Me confortava pensar assim, mas passaram meses sem nos falar, chegou a um ano e meio. Mas uma hora tive que encarar os fatos, tive que ceder, tive que ouvir e me esforçar para entender. Porque tinha uma pergunta que não me saia da mente “onde foi que eu errei!”, essa menina não podia ser normal meu Deus!? Mas não. Fui até ela, a pedido de J.J., que por sua vez, tentou me convencer por A + B que a errada dessa história era eu, dizia “que mulher mais teimosa essa minha!” e continuava “criatura desempaca, é nossa filha, o que mudou. Eu a amo e quero vê-la feliz não importa do lado de quem, da maneira que for, sua felicidade é a minha! Ah, deveria ser a sua também Maria!”. Eu remoia tais palavras, e reconhecia em partes o meu erro, mas ainda não sossegava. Como foi difícil para mim compreender tudo aquilo. Me sentir tão mal por rejeitar minha filha. A rejeitei depois de crescida, sem um motivo de estupro, ou PR não ter vindo em boa hora. A rejeitava por orgulho, por vergonha, por ser tão preconceituosa. Nesse período que ficamos sem nos falar foi como se algo faltasse em mim, era um vazio que sugava minha vida. Nem os abraços de J.J. me supriam. Finalmente a conversa, Joana fez uma retrospectiva de todos os indícios que ela nem sabia que era um sinal de sua diferença. Como sempre fui atenta e os vigiei de perto, eu desconfiei, mas não quis alimentar. A dúvida vinha em pensamentos que eu fazia questão de dissipar feito fumaça no ar. Carros à boneca, rua à casa, isolamento a socialização, viagens à festas comemorativas. Ela nunca perdia a oportunidade de estar distante de mim. Agora entendo, ela me fez entender, eu reprimia e a machucava. Sem querer era eu que mais a fazia sofrer. Minha repressão era um combate ao risco que eu sabia que ela corria. Como pude ignorar o sofrimento de minha menina, não bastava o mundo a condenando, a crucificando, a rotulando. Fui perversa, algo incontrolável, que eu não sentia. Eu também sofria, e sofro. Nunca soube lidar com tamanha contradição. Mas respondi: Eu a amo e apesar de tudo nunca deixei de te amar. Senti sua falta em cada segundo que estivemos distante. Desabamos em lágrimas, nos abraçamos e olhamos novamente uma nos olhos da outra. Ela se desculpava a medida que explicava e finalmente eu me retratei: filha quem te deve desculpas sou eu, pela primeira vez na vida, estou fazendo a coisa certa. E rimos, e choramos, e dessa vez foi ela que me afagou e me deu colo. Eu a pedir, minha filha, obrigada por me ensinar a viver. E a partir desse dia, reconstruímos os laços, a confiança e a amizade. Celebramos o amor, aprendemos com o amor. Finalmente “amei o outro como a mim mesma”, e um outro que é parte de mim e outros que não precisam ser parte de mim. Fez-se valer os ensinamentos de Cristo.



Por Maria.



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