sábado, 24 de outubro de 2009

Sofhie Calle




Interpretando o e-mail de Sr. X á Sofhie.

Me posiciono como uma mulher de 20 anos que já amou e já se sentiu amada. Que como todas (quiçá todos) que já viveram a experiência de amar, sente, pensa e escreve sobre o tema. E frente ao desafio de interpretar algo que escreveram, me sinto parte da história.
Como em todo ato de interação, de sociabilidade, socialização e desdobramentos o amor requer uma troca. Antes disso, um compartilhamento. Por isso, me considero parte e capaz de interpretar essa história.

O momento de Sofhie e Sr. X é transcendental por se fazer sentido, por mim e por qualquer ser humano. Sentido no plano universal e universalizante, capaz de unir e compartilhar. Os cientistas se questionam se a cor que eu vejo é mesma que os outros vêem. Questionamento cabível para os sentimentos. O amor que sinto não deve ser igual ao sentido pelo ser que amo, mesmo quando se sente, ouve e diz ser um amor recíproco. Eis a especificidade do amor, do amar e ser amada. Eis porque concebemos as ‘n’ formas de amor e de amar. Diz-se que o amor de mães para com os filhos é (in)condicional, diz-se que a recíproca não é verdadeira, diz-se que os amantes são mais apaixonados que os (e)namorados. Diz-se muito mais. O dizer é um olhar frente à multiplicidade de olhares, são as suposições, impressões, individuais ou compartilhadas.

Os sentimentos são ao mesmo tempo compartilhados e específicos. Se é que existe alguma forma de defini-los e determiná-los esta é a experiência de cada um. A experiência sentida de cada um. Esta, por sua vez, é compartilhada de imediato com o ‘ser que se ama’ , ou com os seres que se profere o amor. Tal compartilhar pode ser consciente ou não, entenda ‘consciência’ como sinônimo de reciprocidade. Por saber dessa dimensão dual do amor, Sofhie a expandiu, ou melhor, dividiu o e-mail se Sr. X com 107 mulheres. E agora a dissemina, mais e mais ao expor o resultado de tal experiência. Nos instigando a querer interpretá-la também.

Um exercício que farei agora e que outras mulheres devem ter feito ao ter contato com a obra. Insisto no caráter dual uno e múltiplo, específico e universal do amor, do amar e ser amada. Porque assim como a dor, o eventual ódio, vazio e qualquer outro sentimento desperto com o termino de um relacionamento (por razões diversas) é passível de ser sentido por todos, estendido e compartilhado a todos. O que independo de sexo, gênero, credo, condição social e financeira, etnia, idade, estado mental e corporal, cultura pertencente. É o que mais humano possuímos, os sentimentos. Seja de que forma estes foram, são e serão internalizados e externalizados para outrens.

Amamos nos sonhos, a sós (platonicamente), aos nossos familiares, amigos e tantos desconhecidos que casualmente amamos e iremos amar. Na mesma proporção também sofremos, nos iludimos e odiamos quem um dia juramos ter amado. A diferença é que o amor é constante e o desamor (ou desencanto) é passageiro.

Como bons telespectadores de filmes hollywoodianos e novelas globais somos persuadidos pelo lirismo dos românticos, somos levados e embriagados pelo heroísmo, cavalheirismo do amor (o mocinho da história) e o vilanismo do anti-herói o desamor ( desencanto, ou falta de amor, ou qualquer tipo de decepção nesse campo). Pois é, dessa rasteira reflexão como entrar no corpo do e-mail de Sr X? Qual será minha posição.

Pelo pouco que entendi Sofhie estava interessada em captar o olhar, o prisma profissional de cada mulher que interpretou sua carta. Mas como dissociar isso do mar de experiências que cada mulher profissional já vivenciou e sentiu? Para mim, isso é impossível e creio que Sofhie não teria tal intenção tão empobrecedora. Meu espírito ainda não é muito desenvolvido para o entendimento da(s) arte (s). Mas creio que Sofhie tentou deixar sua arte mais interessante ao enquadramento dos diferentes olhares profissionais. E o foi para mim que pretendo ser ‘uma cientista social’, ver a visão de uma advogado encaixando Sr X em artigos x,y,z que previa a punição do ato (rompimento da relação), foi no mínimo insensato. Me perguntei, como assim, desde de quando um sentimento ou falta desse, ou meios utilizados para se obter um fim requer ‘leis’, ‘punição’, ‘ indenização’!? Isso é insano! Creio que meu espanto não é mais pela falta de trato com as ciências jurídicas, nem por querer sociologizar a coisa, é mais por me colocar no lugar de Sofhie e Sr X, independente do título. Então isso me leva a pensar que Sofhie foi além da arte, foi sagaz ao tentar mesclar o campo subjetivo do amor com a posição de cada mulher no mundo profissional. Não pude notar ao longo da exposição, talvez não estivesse lá nem explícito, nem implícito o fato de Sofhie não ter dissociado toda complexidade do universo das mulheres modernas. Ou seja, mulheres que possuem identidades ditas fragmentadas, compartilhadas, multifacetadas. No decorrer da vida cotidiana são (ou estão em busca) profissionais de sucesso, fiéis aos ditames da moda, mães, esposas, militantes - estereótipos ideais, ou não, são homossexuais, amantes, solteiras por opção, profissionais do sexo avessas as padronizações do universo social que estão inseridas. Mulheres que transitam no mesmo espaço e tempo (mesmo que não estejam ajustados são justapostos, ou seja, as diferenças geracionais e de padrões culturais, ex. oriente/ocidente) levando-se em conta a globalização e seus fluxos de informações.

O exposto acima me faz indagar (e como toda forma de indagação é uma suposição que dá margem para contestações) que Sr X pode ter findado com Sofhie devido à imersão da mesma no mundo do trabalho? Simplória esta indagação! O que estou tentando dizer é como a esfera do trabalho e as escolhas profissionais enquadram a personalidade ao ponto de se abdicar de sentimentos, ou melhor, direcionam os passos a serem dados na vida amorosa e pessoal (ter filhos, se casar etc.). No melhor, como a esfera do trabalho impacta a vida sentimental e relacional das mulheres. Dito de outra forma, como as ‘mulheres modernas’ se vêem e agem no decorrer de seus relacionamentos (de ordem amorosa ou não)?

Será que bastou às mulheres serem enquadradas como ‘modernas’ para que suas relações sentimentais, valores e visões de mundo acompanhassem as transformações sociais dos séculos corrente e anterior? Por que as relações amorosas hoje são tão líquidas (a lá Zygmunt Bauman) e passageiras? Por que algumas de nós (jovens mulheres) ainda se predem a ‘velhos’ dilemas como casar e ter filhos, e antes disso para não fugir do tema, se prendem ao amor!? Ops, agora me fiz insensível! Não, não é um conclame contra o amor. Em muito é a vida, o mais pessoal da vida que gira em torno do amor, do amar e ser amada. E das conseqüências dessa vida embriagada de amor, o reflexo dessas conseqüências são igualmente e até mais construtoras de nossas vidas.

Pois bem, vamos ao texto (e-mail de Sr X), sem expansão sociológica, antropológica, pois já a fiz até aqui. Veja, antes de qualquer coisa me identifico com Sr. X. Dar um ponto final em uma relação não é nada confortável. Se você é quem decide terminar é porque tem consciência que o seu gostar pelo outro não é tão grande, igual ou que vai sentir o mesmo que o outro sente por você no desenrolar da relação. Se não por falta de amor pelo outro, pode ser por excesso de amor próprio, necessário para dar um fim a uma relação que já não faz bem. De qualquer forma dentre a gama de causas e motivos, o eminente ‘desequilíbrio’ é notório. Ao meu ver (que pode não ser o seu!).

Destaquei então algumas frases marcantes do discurso de Sr. X:

Primeiro ele explicita seu momento, sua crise existencial, sua “angústia terrível”. Por quê? Para mim o motivo não importou muito, nem incitou raiva para com Sr. X. O fato dele “querer buscar novos horizontes” é totalmente concebível. Em muito me sinto assim, incapaz de me relacionar, de amar apenas uma pessoa. Culpa da ruptura de valores, das relações líquidas, de preferir a ‘liberdade’ a ‘solidão’. Parafraseando Tribalistas “Eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”. É dual, é contraditório, abrir mão da estabilidade, da fidelidade e ainda assim, buscar o amor e ser amada. Ou isso é um contra-senso, ou a modernidade abriu campo para o anseio pós-moderno de ‘reinventar o amor’ a lá Cazuza e Seixas. Então, não posso censurar Sr. X, seu relacionamento com Sofhie é o que chamamos de ‘aberto’, ele tem outras três e ela tem o “B., R.,...”. Ambos estão quites neste aspecto. Mas, Sr X justifica como não conseguiu seguir as “regras”, condições impostas por Sofhie, por isso, se auto-culpabilizou em sua reflexão, recaindo em uma crise existencial. Poxa, por esse viés ele foi muito generoso consigo mesmo e quis passar tal imagem para Sofhie, afinal é um rompimento.

Sobre o mesmo ponto, eis o momento da ruptura: as imposições de Sofhie! Sofhie tentou enquadrar Sr X em uma lógica de relacionamento ultrapassado, não mais compatível com a vivência amorosa de ambos. Então Sofhie não seria a vítima da história, nem a algoz, pois viu, ou encontrou em Sr X a reciprocidade amorosa. Não sendo, por isso, insensato da parte de Sofhie reclamar exclusividade. Intrigante é reclamar exclusividade advinda apenas dele, e não dela, se ela se permitia ver os seus outros. Lembrei de outra musiquinha ‘depois de você os outros são os outros e só’ de Kid Abelha. Isso, Sr X era muito para Sofhie, ao ponto desta ser ‘vítima’ das próprias regras, ou melhor, o feitiço caiu contra a feiticeira.

Quanta crueldade da minha parte, pobre Sofhie é apenas uma mulher do mundo moderno (ou pós-moderno!). Sofhie é agente de seu próprio processo, não é mais ‘objeto’, ou não se deixa usar como objeto. Mas, esse rótulo de ‘moderna’ esconde a face de nossas interiorizações psicológicas e sociais do papel da mulher (papel da mulher? Discurso feminista ultrapassado e nada pós-moderno, ver O mundo das mulheres de Alain Touraine, 2007). A imagem de que a mulher tem um papel e ocupa um lugar determinado pela ideologia dominante (machista) é diluída, ou tentamos diluí-la diariamente, no mundo do trabalho, da família, dos relacionamentos amorosos. Em suma, assumimos o que queremos ser, somos e agimos como melhor nos convém. Sofhie, então, optou por amar Sr X, ou pelo menos, o fez pensar assim ao reclamar exclusividade. Vai ver que Sofhie queria testá-lo, ou medir (se é que isso é possível) a intensidade e a longevidade do amor de Sr. X. Se sim, sou sua fã, mas creio que não. Sofhie caiu na armadilha (ou amarras tradicionais) do amor romântico, fiel, exclusivo e estável. Totalmente contrário ao modo de vida de Sr X, homem, independente do título de moderno que desde os tempos da caverna prefere quantidade à qualidade. Dessa forma, não ia tardar, para Sr X não resistiria muito a ‘natureza de seu ser’. Aff, odeio tal visão, mais determinista do que evolucionista, de ver os homens como estagnados por se escravizarem aos ‘anseios instintivos’. Isso não é regra, mas Sr X, não é exceção. Pelo menos Sofhie tenta acompanhar o ritmo do seu tempo, UAU – Quão feminista isso! Aiaiai. Só não posso me tornar reacionária, jamé,rs!

Gostei de outra passagem do e-mail, uma que Sr X confessa: “achei que a escrita seria um remédio...que meu ‘desassossego’ se dissolveria nela para encontrar você”. Nesse trecho o achei fantástico! Se expôs ao extremo. Muitas vezes tenho a escrita como meu divã, na falta de amigos, ou de um desabafo improferível a outros que não a mim mesma, escrevo. Isso é típico de escritores, ou de pseudo-escritores, como eu (piada).

Ao longo do discurso é notável que sua auto-reflexão é uma tentativa de sensibilizar Sofhie, mostrando toda sua vulnerabilidade. Se o foi, foi uma boa estratégia, mas não funcionaria comigo por muito tempo. Se Sofhie realmente o amou, pode ter sido um conforto. Por isso, ponto para Sr X, rs. Manipular, ou tentar manipular o sentimento alheio é uma válvula de escape para atingir o auto-conforto. Fazer o outro acreditar que você penou para tomar uma decisão cabal diminui o sentimento de culpa. É uma atitude cruel para com o outro, ou não, isso é uma questão de ponto de vista. Varia também em relação ao outro em questão às vezes o fora é tão prenunciado, mas o cego de amor abre a boca e diz “eu sei que você não me ama, mas eu quero continuar com você!”, paciência! Chame de frieza, de requinte de crueldade, eu chamo, o quão honesto é esse ser sincero capaz de dizer ‘acabou, adeus’. Mas em termos de fim de relacionamento, quando o ponto final é meu, também opto pela ‘auto-depreciação ‘eu não presto’, ‘você é maravilhoso’, ‘eu é que não presto’, diminui o impacto, mas é igualmente cruel,pois o cego/cega de amor ouve tais depreciações como um insulto. Se xingar, se depreciar é ferir moralmente o ser que ama, pois o ser amado é um toten endeusado e cultuado, um ser sagrado ( a lá Durkheim). Ou seja, minha tática é falha, uma vez que a imagem e os sentimentos não se alteram, não vô ser vista com maus olhos, conseqüentemente não diminuirei a dor do fora.

Segue Sr X com sua verborragia, apela para o amor eterno “nunca deixarei de amar você...esse amor...jamais morrerá” (Arrá, você também já disse isso néh, hehe). Não só, para Sr X o amor é recíproco, Sofhie o ama igualmente “todo amor que sentimos um pelo outro”. Ah , isso o “obriga a ser honesto”. E atinge o clímax da sinceridade e tudo que “houve entre nós (eles) permanecerá único”. Te lindo. Se Sofhie sentiu a ‘sinceridade’ dessas palavras, a intenção de Sr X se realizou. Isto é, seu sentimento de culpa se diluiu com a conformidade de Sofhie. Digno de uma salva de palmas. Se não fosse pela corrente hipocrisia de Sr X em dizer em pleno termino, em plena penúltima frase “gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente”. Uau, gostaria tanto que terminou por e-mail, uma graça o Sr X (mas, no mundo das relações virtuais é natural começos e términos por MSN, Orkut, e-mail etals, não devemos crucificá-lo por isso!). Sr X não se dar por satisfeito antes de disparar o tiro de misericórdia “CUIDE DE VOCÊ”. É assim que ele termina o e-mail e a relação. Dane-se Sr X! Agora falo como uma mulher histérica e traída, embora este não tenha sido o caso, rs.

A última frase me remete dizer que Sr X é extremamente perverso. Cuidar de você a priori significa duas coisas: primeiro que Sofhie sofreria com o termino da relação e estaria muito frágil por isso; segundo que, uma vez que, Sofhie se cuida, cura eventualmente a dor que Sr a causou, e conseqüentemente diminui a culpa de Sr X por tê-la feito sofrer. Pensamento lógico, causa-conseqüência, encaixadinho e questionável. Prefiro ser metodologicamente marxiana e ver além da aparência, que essência existe por trás do ‘cuide de você’!? Veja, quanto a primeira proposição, o termino é tido como fatal para Sofhie, lhe trará sofrimento dor, desespero. Ah, visãozinha estereotipada da ‘mulher como sexo frágil’, que acredito não ser o caso de Sofhie, abalada sim, frágil nunca (se é que ela se abalou!). E quanto segunda proposição, nada mais, nada menos que uma subestimação da capacidade de superação feminina. Sr X, mostrou-se ‘canalha’, ‘sacaninha’ apostando na fragilidade de Sofhie e no estímulo a ‘recuperação’ da mesma, ao proferir o ‘cuide-se’. Um terceira vertente surge, ele pode ter sido sincero, amou e inocentemente se sentiu amado. Por isso, é humano querer que Sofhie se cuide. Afinal, quem ama fica feliz com a felicidade do ser amado (é o que dizem, os românticos!).

Aff, isso me leva a crer, que tanto da parte de Sr X como de Sofhie estes rótulos de ‘modernos’ e ‘pós-modernos’ ainda estão presos a divisão de gênero homens/mulheres. Dicotomia preconceituosa, discriminatória refletida em atitudes e pensamentos sobre os relacionamentos entre pessoas de sexo diferentes. Em relação aos homossexuais, bissexuais transexuais parece que a barreira da dicotomização dos sexos em muito já se diluiu, uma vez que a relação tende a ser mais horizontalizada. Porém é sabido, que heteros e homos lutam contra os entraves do olhar dominante que pende para retroalimentar as padronizações sócio-culturais, segregando minorias e permeando injustiças contra os que são e querem ser reconhecidos como diferentes. Mudar mentalidades vai além da mudança de valores, instituir leis condiciona a mudança de habitus, porém conter a cólera do olhar fuminante contra o outro que foge as regras (da moral e bons costumes das instituições familiares, religiosas, políticas, jurídicas e outras) pactuadas, requer no mínimo uma transgressão. Transgredir o aqui e o agora, chocar ao invés de conscientizar, ou conscientizar chocando, para assim reconhecer o outro igualmente na sua diferença (a lá Boaventura Sousa Santos). Sr X chocou?! Sofhie chocou?! Eu choquei!? Fui além, tentei, agrade, convença, persuadiga ou não.

Contudo, consegui escrever isso tudo, porque me sinto parte do processo. Sou uma atriz moderna, pós-moderna que lido com atores igualmente rotulados. Atores que também lidam com dilemas antigos, presentes e futuros. Tensões, rupturas e reconstruções são parte dos sentimentos, constitutores das relações amorosas, sociais e que transgridem a história, o tempo e o espaço ao modo de nosso olhar e resignificação do universo simbólico que estamos inseridas (os). Sofhie e Sr X são parte de mim e se fazem sentidos, compartilhados e externalizados no meu opinar sobre a experiência deles.

Escrito em 11/10/09, digitado em 23/10/09. Referência principal, o e-mail de Sr X, só li uma das 107 cartas da exposição de Sofhie.

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